Geralmente, existe um momento no qual percebemos como a habitação do mundo é feita através de distâncias; as formas vagam por nossas lembranças com diferentes níveis de nitidez e dispersão já que precisamos economizar alguns detalhes em detrimento da plenitude de outros. Como você consegue ter a certeza de que algo aconteceu? A memória tende a transfigurar as coisas vividas. O que sobra é algo de uma integridade particular, a qual não é inteiriça, talvez, no propósito de representar o passado, mas é responsável pela sua própria autonomia. Lembro do sol matinal e acolhedor nas estações mais frias do ano, desejado frequentemente por mim, alguém que morou sempre numa cidade quente como esta e sinto que os feixes de luz oferecem um jeito análogo de se pensar a memória: eles, os feixes, são a eminência, o desenho e a polarização de algo que nos permite escrever a cartografia das paisagens, o qual é a luz banhando as coisas, quando se constituem da matéria dissolvida e pairante sobre todo o horizonte. Aqui na América do Sul, a luz imanta e dá o tom dos dias com os raios de sol. Ela circula ao redor de nós e nos abraça, descrevendo trajetórias curvas no meio ambiente que é heterogêneo e plural. Continuamos com a luz elétrica assim que anoitece. Canalizando-se como um feixe, a luz enuncia os seus pressupostos de modo mais eloquente, com a sua própria voz, e assim faz, também, a memória. Ao passo que vive-se a luz, estamos misturados nela e é mais fácil de se perder os seus contornos, tão quanto é com a memória. A memória mais recente pode ser transcrita mais facilmente mas essa aproximação também pode disfarçá-la como o presente. O tempo é um mosaico. Imagino que as diferentes sensações de pertencimento aos vários âmbitos da vida pelos quais passamos sirvam para identificarmos a contundência dos nossos cotidianos.